20/10/2009

Pseudo-Aristóteles




Da Antiguidade chegaram-nos muitos documentos com o autor incerto. Não me refiro aos abundantes fragmentos cujo autor é completamente desconhecido, mas sim àquele grupo muito particular de "Pseudos" que tão desarticuladamente ladeiam o caminho da referência autorial. Pseudo-Aristóteles, Pseudo-Plutarco, Pseudo-Apolodóro, só para nomear uns quantos, frequentemente oscilam na crítica entre a remoção do prefixo e a inclusão. Escritos são avaliados e reavaliados segundo variados critérios de autenticidade até se chegar a uma opinião relativamente consensual relativa à autoria do escrito. Tudo muito giro. Mas bastante mais curioso é a razão para tais escritos de facto não terem um autor fixo. Algumas dessas razões são facilmente compreensíveis à sombra da alma humana: alguém escreve um texto, assina-o através dos meios disponíveis; anos mais tarde, uma de duas coisas acontece: o texto reemerge mas sem qualquer referência ao autor (perdeu-se o início, onde viria o nome, perdeu-se o que quer que fosse que autenticava o texto), e então algum promotor analisa-o e conclui (erradamente) que fora escrito por um outro autor com o qual ele estava já familiar; ou então, para aumentar a disseminação, escreve lá ριστοτέλους e aquilo corre que nem numa Maratona: isso seria de esperar.

Mas a mim interessou-me mais para esta mini-reflexão uma outra direcção. Daqueles casos em que se sabe que foi o próprio autor do texto quem o atribui a outrém. Imagina-te a escrever um livro, um tratado, um poema, e a amá-lo para além de ti mesmo, tanto que encontres na provável imortalidade dele maior mais-valia do que na apenas possível imortalidade que lhe seria dado alcançar caso se tivesse que arrastar consigo ainda mais o peso do teu nome. É preciso um grande amor. Claro que há vários pressupostos questionáveis nesta minha embelização: de que a preocupação da perenidade estava presente; isso em si é muito discutível: já Foucault, naquele brilhante ensaiozito 'O que é um Autor?' (e agora espanquem-me por estar a referir-me ao all-quotable), fala da transição do peso da "função autor" na aurora da Modernidade e no questionamento dos Clássicos. Antes, na era pré-Moderna,

"textos que agora chamamos "literários" (histórias, folclore, épica, tragédias) eram aceites, circulados, e valorizados sem qualquer questão sobre a identidade do seu autor. A sua anonimidade era ignorada porque a sua idade real ou suposta era garantia suficiente da sua autenticidade. Textos, porém, que hoje em dia chamamos "científicos" (tratados cosmológicos ou celestes, médicos ou patológicos, de ciências naturais ou de geografia) eram considerados verdadeiros durante a Idade Média unicamente se o nome do seu autor viesse indicado. Afirmações como "Hipócrates afirma que..." ou "Plínio diz-nos que..." não eram meramente fórmulas para um argumento de apelo à autoridade; assinalavam um discurso comprovado."

Isso pode explicar em certa medida o apagamento voluntário de si. Mas, de qualquer dos modos, o que o monsieur F está a explicar é a aceitação social de um determinado texto na sua posteridade, não a atitude do autor. Regra geral, é de atestar que 'até' na Idade Média os autores, tendo a escolha disponível, deixam o nome registado (a música sacra, cujos autores só bastante tarde começam a deixar os nomes escritos, é uma excepção: mas no que sei pouco não me alongo). Será uma projecção presentista a de tentar inevitavelmente ver uma vontade de imortalidade pela poesia numa época que talvez não a tivesse? Até os versos de Virgílio

[Ille ego, qui quondam gracili modulatus avena
Carmen, et egressus silvis vicina coegi,
Ut quamvis avido parerent arva colono,
Gratum opus agricolis, at nunc horrentia Martis]
Arma virumque cano.

[Eu aquele, que em tempos compus com suave flauta
Poesia, e saí dos bosques até aos campos vizinhos,
Fazendo a terra servir ao ávido agricultor,
Obra de muito valor, e agora os horrores de Marte,]
Armas e o homem canto.

                   nos surgem apócrifos. Por serem de "qualidade inferior", por não se enquadrarem, a verdade é que a única referência do poeta a si mesmo é talhada e obliviada. Que reflecte isso? Que o autor ceda caminho à sua obra? Não me parece, até porque dificilmente o Ocidente honrou mais um poeta que Virgílio. Mas ele sabia já que a sua obra seria imortal (e talvez isso o assustasse). Mas então aqueles para quem essa certeza era tão improvável? Descartar a Ambição por Amor da Poesia? É como se as figuras de Keats nos surgissem à frente, e o resultado da sua intercalação fosse vastamente diferente daquele do que a ele induziram. Qualquer que seja a resposta final da filologia, este possível sacrificar-se em prol da obra é, no mínimo, estonteante.

The first was a fair maid, and Love her name;
    The second was Ambition, pale of cheek,
        And ever watchful with fatigued eye;
The last, whom I love more, the more of blame
    Is heap'd upon her, maiden most unmeek, -
        I knew to be my demon Poesy.




À laia de bónus, há alguns meses atrás deparei-me com uma edição dum suposto "Segredo dos Segredos", de Pseudo-Aristóteles, cuja 'dedicatória' traduzi. Deixo aqui a minha versão.


Quando eu estive em Antioquia ao vosso serviço, encontrei esta preciosíssima pérola de filosofia, e fora então sobejamente conveniente ao vosso serviço que fosse ela traduzida de Arábico para Latim. O que é mais, visto que eu desejava obedecer às vossas ordens com subserviência tal, e servir a vossa vontade tal como é minha responsabilidade, traduzi este livro, que muita falta fazia aos Latinos (e que além disso se encontra junto de apenas um minúsculo número de Árabes), com trabalho árduo e discurso claro tal, da língua Arábica para Latim, tudo para a vossa grandeza e honra, e por vezes desvendando uma letra por outra e por outras vezes o sentido a partir do contexto, visto que há junto dos Árabes um modo de dizer as coisas, e um outro junto dos Latinos.


Então Aristóteles o habilíssimo Príncipe dos Filósofos compôs este livro por mando do rei Alexandre, o seu pupilo, que lhe houvera pedido que se encontrasse com ele e lhe revelasse o segredo das artes quadripartidas, nomeadamente o movimento, os procedimentos e o poder dos poderes celestiais na astronomia, na arte da alquimia, na natureza, e na capacidade de compreender as essências, e como tratar as incantações aeromânticas e geomânticas. 


E embora ele tivesse tentado por todos os meios esconder os segredos das sabedorias acima mencionadas, ainda assim, opor-se à vontade e ao mando de um tão grande senhor era algo que ele nem ousava fazer nem devia sequer ter feito. Querendo portanto por um lado agradar ao seu imperador, e por outro querendo esconder os segredos dessas artes, compôs ele este livro através de adivinhas, exemplos, e sentidos figurados, ensinando na aparência das suas palavras a doutrina filosófica que dizia respeito àquele senhor dos senhores, de como preservar a saúde do corpo, e como adquirir a inefável utilidade e conhecimento dos corpos celestes. No interior, porém, no centro mais profundo da sua obra, deixou a Alexandre, enigmaticamente e em segredo, a mensagem principal que ele houvera tão veementemente insistido.

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