07/10/2009

Sartre contra Proust

Meknès. Como é que era então aquele montanhês que nos meteu medo numa ruela, entre a mesquita Berdaïne e aquela praça encantadora à sombra duma amoreira? Ele vinha na nossa direcção, a Anny estava à minha direita. Ou era à minha esquerda?

Aquele sol e aquele céu azul não eram mais que enganos. É a centésima vez que me deixo prender. As minhas memórias são como pistolas na bolsa do diabo: quando se abre só lá se encontram folhas mortas.

Do montanhês, não vejo mais que um grande olho apagado, leitoso. Mas este olho serve-lhe? O médico que me explicou em Bakou o princípio dos abortos do Estado também era vesgo, e quando me quero lembrar do seu aspecto, é também aquele globo esbranquiçado que aparece. Estes dois homens, como os Nornes, têm apenas um olho, que usam à vez.

Quanto a esta praça de Meknès, onde eu ia todos os dias, é ainda mais simples: já não a vejo de todo. Resta-me a sensação vaga de que era encantadora, e estas cinco palavras indissoluvelmente ligadas: uma praça encantadora em Meknès. Sem dúvida, se fechar os olhos ou se fixar o tecto com atenção, consigo reconstituir a cena: uma árvore ao longe, uma forma sombria e compacta que se inclina para mim. Mas tudo isto eu invento pelas exigências do meu argumento. Aquele Marroquino era grande e seco, e além disso reparei nele apenas no momento em que me tocou. Assim, eu sei ainda que ele era grande e seco: certas cognições abreviadas demoram-se na minha memória. Mas não vejo nada: tenho um belo folhear do passado do qual não retiro mais que farelos de imagens, e já não sei muito bem o que é que eles representam, nem se são recordações ou ficções.

Noutras ocasiões há ainda muitos casos em que até esses farelos desapareceram: não resta nada a não ser as palavras: eu poderia ainda contar histórias, contá-las demasiado bem (nas anedotas não temo ninguém, salvo os oficiais da marinha e os profissionais), mas não são mais que carcassas. Há para aí um tipo que faz isto ou aquilo, mas não sou eu, eu não tenho nada que ver com ele. Ele passeia por países sobre os quais eu estou tão informado como se nunca lá tivesse estado. Por vezes, no meu discurso, ele chega mesmo a pronunciar uns belos nomes lidos num Atlas, Aranjuez ou Canterbury. Fazem nascer em mim imagens completamente novas, como acontece, ao lê-los, às pessoas que jamais viajaram: eu sonho sobre as palavras, e isso é tudo.


in JP Sartre, Le Nausée, tradução minha

1 comentário:

  1. Primeiro, uma sugestão: onde se lê "como os Nornes" (final terceiro parágrafo) não deveria estar "como as Nornas"? Estou a imaginar, correndo o sério de risco de estar errado, que o Sartre se esteja a referir às «Moiras» nórdicas, confundindo-as com as homólogas gregas, as quais essas sim possuíam apenas um olho, ao contrário das suas irmãs escandinavas que, tanto quanto sei — mas eu ainda tenho de aprofundar muito os meus estudos de mitologia nórdica —, não sofriam de qualquer handicap oftalmológico. De resto, mesmo desconhecendo o original, a tradução é-me agradável. Talvez te encomende um trabalho pequenino, brevemente.

    É curioso que tenhas postado este texto. Ainda ontem, depois de uma longa tarde de conversa com a Rita, desembocámos na questão da memória, mas, e aqui está o interessante, abordámo-la sobretudo focando-nos no que a memória tem de (re)construção. Nunca tinha pensado que, tanto quanto me lembro, dos dois volumes e meio que já li, as memórias «do» Proust são, todas elas, verdadeiras, isto é: são-nos apresentadas como autênticas, sem contributo próprio retrospectivo. Talvez isso seja uma necessidade, já que uma das dinâmicas anímicas fundamentais da obra é precisamente o colapso do que se "sonha sobre as palavras" (e.g.: tudo o que ele associava, na infância, aos Guermantes) quando isso entra em confronto com a realidade, que surge invariavelmente como uma espécie de desilusão. A memória proustiana é exacta e detalhada; nos seus piores momentos incompleta (como aquela alameda de árvores que ele reconhece num dos seus passeios com a senhora de Villeparisis em Balbec, sem que consiga recuperar os detalhes da Ur-memória que aquela alameda lhe evoca).

    E, contudo, o mais das vezes, nós esquecemos, mais do que recordamos (não será isto um dos segredos do Proust? O movimento dele ser tão inverso ao real, que nos surpreende?). Há um filme que não sei se vi quando muito pequeno, se o sonhei. Tenho uma memória de ir ver a Pocanhotas ao cinema na Covilhã, mas os meus pais dizem que tal nunca aconteceu. As memórias estão todas esbaçoladas, pelo menos, mesmo as dos acontecimentos que me são mais queridos, pela alegria ou pela dor. "Eu sonho sobre as palavras, e isso é tudo". Tenho recentemente pensado o quanto esta minha desatenção pelas imagens em favor das palavras me pode prejudicar como escritor (aqui entra Proust, mas em não menos medida Rilke). Isto não deixa de ser estranho, porque eu tenho uma certa inteligência visual e arrisco dizer que ela está em expansão. Mas do passado lembro só fotogramas e as grandes conversas reduzem-se a meia dúzia de 'tags'. É verdade que o esquecimento é um imperativo biológico: precisamos de esquecer (lembras-te do conto do Borges que o Sá nos leu, sobre Funes, o homem que não esquecia?). Acho que o triste é não termos poder sobre o processo, quando ele nos é tão íntimo: mecanismos autónomos do subconsciente escolhem o que guardamos e o que obliteramos. Podemos ler o que escrevemos num diário na altura, por exemplo, mas aí, mais do que nunca, estaremos a "sonhar sobre palavras" (adorei esta expressão: vou acarinhá-la). As fotos também não nos salvam: são lápides: olha-se para ali e não nos lembramos de mais nada daquele dia senão aquela imagem (passa-se isto comigo em relação ao Algarve, ao qual fui em pequeno, e que só conheço pela foto que tenho de mim no mar com o meu pai).

    Especulação: será que a nossa manipulação das memórias é uma forma de império sobre elas, uma forma de as fazer mais nossas? Será o esvaziarmo-las de referentes externos (os da imagem), o disponibilizá-las para que as retrabalhemos e reconstruamos a realidade como ela é, efectivamente, na nossa subjectividade, para nós? Não será, afinal, bom, esta destruição do que nos é imposto, não será uma vitória sobre o passado, teoricamente inexorável? Mas isto também não tem de ser nada assim e pode mesmo ser um pensamento perigoso e feio, de uma psicologia omnívora. Este último parágrafo, é de um heterónimo. Não me responsabilizo pelas opiniões expressas.

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