29/12/2010

A Primavera do Rei Cosroe


Tenho uma vontade gigantesca de ler este livro.
Ah, quer-mo oferecer? Que gentileza a sua.

tantos, eram tantos

Túmulos de Guerra
-- Na véspera da Festa dos Mortos

Roupas sujas de poeira, lágrimas e sangue,
O triste regresso após anos de guerra.
Varridas pela borrasca: flores de pereira
Passa a véspera da Festa dos Mortos.
São tantos os novos que enlutados
Juntos dos túmulos se lamentam.

Gao Qi. Uma Antologia de Poesia Chinesa. Gil de Carvalho (trad.) Assírio & Alvim. (2010)


E io, che riguardai, vidi una ’nsegna
che girando correva tanto ratta,
che d’ogne posa mi parea indegna;

e dietro le venìa sì lunga tratta
di gente, ch’i’ non averei creduto
che morte tanta n’avesse disfatta.

Dante. Divina Commedia Inferno III.52-57


Unreal City,
Under the brown fog of a winter dawn,
A crowd flowed over London Bridge, so many,
I had not thought death had undone so many.
Sighs, short and infrequent, were exhaled,
And each man fixed his eyes before his feet.

TS Eliot. The Waste Land. The Burying of the Dead. 60-65

sobre as asas de anjos

Entre os ensaios que gostaria de escrever  mas que não sou capaz de escrever  conta-se um sobre a morfologia das asas dos anjos. É um projecto imenso que exigiria uma enorme cultura e uma extraordinária delicadeza e sensibilidade porque, nas asas dos anjos, exprime-se tanto uma complicada cultura teológica como uma liberdade de fantasias e loucura, sem limites nem prescrições. Asas dos anjos de Cavallini em Santa Cecília, no Trastevere, tão multiformes que embrulham e escondem dentro delas a criatura celeste; asinhas desesperadas que batem freneticamente nos anjos de Giotto; trémulas e subtilíssimas asas de Simone Martini que terminam em penas de pavão; asas de borboleta do Beato Angelico; asas cor-de-rosa e azul vivo de Pisabello; imensas asas cor-de-rosa e azul celeste dos anjos de Signorelli, que tocam as trembetas da Ressureição; asas apenas esboçadas de Correggio e Parmigianino; asas que parecem ensanguentadas no anjo músico de Rosso Fiorentino; asas, entre as da pomba e as da águia, no Descanso durante a fuga para o Egipto de Caravaggio; asas escancaradas e tão robustas do Greco... Quantas asas mais teria ainda de acrescentar!

Pietro Citati, Israel e o Isão: as centelhas de Deus. Luísa Feijó. Cotovia. (2003)


Luca SignorelliOs Eleitos no Paraíso. Catedral de Orvieto. 1500-1503

breves notas sobre marionetas

#1
Guido Ceronetti (Andezeno, 24 agosto 1927) è un poeta, filosofo, scrittore, giornalista, traduttore, drammaturgo, teatrante e marionettista italiano. 

#2
Os homens são como crianças que assistem a um espectáculo de marionetas. A cortina misteriosa abre-se; as marionetas de pano agitam-se sobre a mesa de madeira; dançam, falam, gritam, levantam-se e sentam-se, recitando para alegria dos seus pequenos espectadores, a história de Ali Babá e os quarenta ladrões. Os meninos sentados na sala admiram as figuras de pano e pensam que são elas que cantam e dançam, que conhecem o amor e o ódio, a alegria e a dor. Os olhos das crianças são cegos. Na escuridão da tarde não detectam os fios, subtis como cabelos, que o manipulador segura nas suas mãos sábias. Entre eles encontram-se apenas alguns iniciados. Os seus olhos contemplam aqueles fios delicados como teias de aranha que, num dos extremos, estão ligados às figuras de pano -- nós próprios, criaturas de carne e osso -- e cujo outro extremo se perde no céu. Lá em cima, os anjos têm nas mãos os fios invisíveis; e olham para cima à espera das ordens que o caprichoso e omnipotente Manipulador lhes queira transmitir.

Pietro Citati, Israel e o Isão: as centelhas de Deus. Luísa Feijó. Cotovia. (2003)

#3

do Corcunda de Notre Dame

Naquela aragem fria

Naquela aragem fria, não há lugar para o incenso.


Steiner, apropos la Weil

23/12/2010

iKant

Faz-me tanta falta perceber minimamente Kant. Ou melhor: percebo minimamente: o mínimo que não chega a ser funcional, mas que chega para perceber o quão deficiente só pode ser o meu raciocínio por lhe faltarem esses elos da cadeia que sei que existem mas dos quais desconheço a cor & contornos.

Próxima paragem: Crítica da Auto-crítica
A mim o que mais me interessa na filosofia é o que nela há de teologia, e o que mais me interessa na teologia é o que nela há de poesia.

18/12/2010

Orestes & Christo, secundum la Weil


Cristo comporta-se como o herói da tragédia, como o salvador de Argos, não só da maneira contada na mitologia de Simone Weil ("veja-se o caso da sua interpretação do diálogo entre Electra e Orestes como uma conversa entre Cristo e a alma") mas também como o atormentado salvador divino da desgraça. O evangelho é o de Marcos. Orestes dilacera-se entre a culpa que será sua se cometer o maior dos crimes, o matricídio, e, séculos mais tarde, Cristo recua, vacila, tropeça e escorrega de terror até ao instante em que interioriza por completo os desígnios do seu Pai. O grego sabe do que tem de prescindir, mas algo lhe parece tão monstruoso que até a providência  a Vontade de Deus lhe dirigir a palavra, até Pílades lhe comunicar o fiat divino, Orestes não pode matar, Cristo não pode morrer. Ambos acabam por lançar o Ja-sagen por entre lágrimas, e perguntamo-nos se a lâmina de Orestes não são os pregos no corpo do Cristo: são uma única lâmina, a espada de Orestes, a faca de Abrahão, a lança de Longino, são o golpe contra aquele que Deus ama, e, porquanto sabemos que Dieu ne peut aimer que soi. Nous ne pouvons aimer qu’autre chose, é um vero golpe contra o Deus, contra la somma sapienza e 'l primo amore. A todos é necessária a renúncia, o Sim de Nietzsche: mas renúncia não apenas martirífica, como Thomas à Beckett do Murder in the Cathedral, Orestes não pode cometer o pecado se estiver seguro de que será recuperado pelo deus num dia futuro, pelo tribunal das Atenas: se Thomas se lançasse para a morte seguro da graça divina, isso seria "the last temptation [,] the greatest treason: / to do the right deed for the wrong reason": Orestes tem de matar Clytaemestra não por amor a Agamémnon (e isso compreenderam-no Strauss e Hoffmannstahl  melhor que ninguém, ao fazerem um Orestes absolutamente tépido na Elektra), nem por amor à casa dos Atridas, nem pela justiça: Orestes tem de matar por amor à palavra sancrosancta de Apollo; e Orestes é um filho desse deus sanguinário de Délfos, assim como o Cristo é um filho desse deus sanguinário de Sinai: como o filho conhece o pai, o ama por entre os seus erros e não o pretende mudar: quando Orestes mata não espera ser perdoado, quando Cristo morre não espera ser ressuscitado: esperar isso seria tentar a Graça: the greatest treason [o maior acto de piedade, o acto acessível apenas ao Cristo: beatificar com um único acto de absoluto amor Meleto e Judas]. Na tragédia do Mundo Orestes é apedrejado pelos Atenienses, e o Christo não pode sequer ser excepto enquanto Crucified Lord.

14/12/2010

da Constituição Alemã

Pormenores absolutamente espantosos. Daqui. http://en.wikipedia.org/wiki/Streitbare_Demokratie.


The political system of the Federal Republic of Germany is also called wehrhafte or streitbare Demokratie (militant democracy). This implies that the government (Bundesregierung), the parliament (Bundestag) and the judiciary are given extensive powers to defend the freiheitlich-demokratische Grundordnung (liberal democratic order) against those who want to abolish it. The idea behind the concept is the notion that even a majority of the people cannot be allowed to install a totalitarian or autocratic regime, thereby violating the principles of the German constitution, the Basic Law.

[edit]Tools of the 'Streitbare Demokratie'

Several articles of the German constitution allow a range of different measures to "defend the liberal democratic order" .
  • Art. 9 allows for social groups to be labelled "verfassungsfeindlich" ("hostile to the constitution") and to be prohibited by the federal government. Political parties can only be labelled enemies to the constitution by Germany's highest court, the Bundesverfassungsgericht (federal constitutional court), according to Art. 21 II.
  • According to Art. 18, the Bundesverfassungsgericht can restrict the basic rights of people who fight against the "verfassungsgemäße Ordnung" (constitutional order). As of 2008, this has never happened in the history of the Federal Republic.
  • The federal and state bureaucracies can exclude people deemed "hostile to the constitution" from the civil service according to Art. 33. Every civil servant is sworn to defend the constitution and the constitutional order (Berufsverbot).
  • According to Art. 20, every German citizen has the right to resistance against anyone who wants to abolish the constitutional order, though only as a last resort.

13/12/2010

Carl Schmitt sobre os tais "mercados"

Outside the political [sphere], liberalism not only recognizes with self-evident logic the autonomy of different human realms but drives them toward specialization and even toward complete isolation. [...] The most important example of such an autonomy is the validity of norms and laws of economics. That production and consumption, price formation and market have their own sphere and can be directed beither by ethics nor aesthetics, nor by religion, nor, least of all, by politics was considered one of the few truly unquestionable dogmas of this liberal age. With great passion political viewpoints were deprived of every validity and subjugated to the norms and orders of morality, law, and economics. In the concrete reality of the political, no abstract orders or norms but always real human groupings and associations rule over the other human groupings and associations. Politically, the rule of morality, law, and economics always assumes a concrete political meaning.

Carl Schmitt, The Concept of the Political (der Begriff des Politischen). George Schwab (trad.) University of Chicago Press. (2007)

Mas o Senhor endureceu o coração do faraó

Moisés disse: "Eis o que diz o Senhor: pela meia-noite passarei através do Egipto, e morrerá todo o primogénito na terra do Egipto, desde o primogénito do faraó, que deveria sentar-se no seu trono, até ao primogénito do escravo que faz girar a mó, assim como todo o primogénito dos animais. Haverá em toda a terra do Egipto um tal clamor tal como nunca houve nem jamais haverá. Quanto aos israelitas, porém, desde os homens até aos animais, ninguém, nem mesmo um cão moverá a sua língua. Sabereis assim como o Senhor fez distinção entre os egípcios e os israelitas. Então todos esses teus servos virão procurar-me e prostrar-se-ão diante de mim, dizendo: vai-te tu e todo o povo te acompanhe! E depois disto partirei". Moisés, grandemente irado, saiu da casa do faraó. O Senhor disse a Moisés: o faraó não vos ouvirá, para que os meus prodígios se multipliquem no Egipto". Moisés e Aarão tinham operado todos estes prodígios na presença do faraó. Mas o Senhor endureceu o coração do faraó, que não permitiu aos israelitas partirem da sua terra.

Êxodo. 11:4-10 Editorial Missões.

aquém do bem e do mal

o cinismo é a máscara do desespero da piedade, a humanidade colossalmente professa sempre esconderá a barbárie.

08/12/2010

Via Negativa

Via Negativa

As a child
     what I loved
most of all

was going out
     at daybreak
in the fog

—stacked mist
     over the marshes
or the white

cathedral
     of the haar —
it barely

mattered
     if the path
I followed there

came to a stop
     in reed beds
or silvered willows

where something
     opened:
something like a gaze

as if the middle-ground
     I could not see were

                    not
that grim
     self-conscious sense
of being seen

the way a child is seen
     by Jesus
and his angels

                    not
the haunting
     we contrive
by going out

to where
     we don't belong
but

something else
     I couldn't say
in words

an evidence
     of grace
that makes

each living
     creature
moving in the world

so much itself
     though
interchangeable

and surely
     what I loved
was not my own

strict presence
     in a pocket
of the fog

but being there
     as everything
is there

at random,
     to be shaped
by what is not.

John Burnside, The Good Neighbour. Cape Poetry (2005)

02/12/2010

haveria um único compasso de Mozart que pudesse exprimir um mal intrínseco?

Para além do verdadeiro e do falso, para além do bem e do mal. Estas dicotomias relacionam-se intimamente, ainda que de formas complexas. A música pode ser usada para maus fins quando é composta e executada para glorificação da tirania política, do kitsch comercial. Pode ser, e já foi, tocada suficientemente alto para abafar os gritos dos torturados. Esses usos, de que é emblemática a exploração da música de Wagner, mas também da Nona de Beethoven (recorde-se o apontamente de Adorno!), são absolutamente contingentes. Não derivam da música em si, não negam a extraterritorialidade ontológica e formal da música relativamente ao bem e ao mal. Avesso a Wagner, Lukács perguntou se haveria um único compasso de Mozart que pudesse ser usado para fins políticos, que pudesse exprimir um mal intrínseco. Quando eu falei deste desafio a Roger Sesssions, o mais gentil dos compositores, este respondeu, sentando-se ao seu piano e tocando a ária ameaçadora da Rainha da Noite na Flauta Mágica. Contudo, acrescentou imediatamente: "Não, Lukács tem razão."

George Steiner, Errata: revisões de uma vida. Margarida Vale de Gato (trad.) Relógio d'Água (1997)

28/11/2010

Prière sur l'Acropole

»Un immense fleuve d'oubli nous entraîne dans un gouffre sans nom. Ô abîme, tu es le Dieu unique. Les larmes de tous les peuples sont de vraies larmes ; les rêves de tous les sages renferment une part de vérité. Tout n'est ici-bas que symbole et que songe. Les dieux passent comme les hommes, et il ne serait pas bon qu'ils fussent éternels. La foi qu'on a eue ne doit jamais être une chaîne. On est quitte envers elle quand on l'a soigneusement roulée dans le linceul de pourpre où dorment les dieux morts.»

Ernest Renan, Prière sur l'Acropole
vive o que leste com a dor & qualidade
do pensamento que tudo destrói
até que os mortos trespassem a tua vida
os irmãos ou os pais
ou aqueles antigos
com vozes de prata

Silent Monks Singing Halleluia


And He shall reign for ever and ever.

22/11/2010

O Génio em Chamas - Thomas Bernhard e O Náufrago


Três pianistas encontram-se e estudam juntos em Viena. Um deles é Glenn Gould, os outros dois não interessam, porque um deles é Glenn Gould. A natureza humana tem o limite da técnica, o do suor até às 4 da manhã, o do isolamento obcedado de quem tudo sacrifica em prol de um pouco mais de virtuosismo; e o do génio, que potencia todo o esforço que lhe é dedicado mil níveis além e que condena todo aquele que não é génio —mesmo que à arte tenha dedicado quatro vidas, mesmo que lhe tenha sacrificado o amor, a família, a humanidade— o génio que condena todo o não-génio à mediocridade. E a única opção solenemente possível para o artista autêntico, autêntico e medíocre, é destapar-se do véu tonto e retirar-se da arte.

Um desses pianistas é destruido pela acusação passageira de Glenn Gould, que lhe chama "náufrago", e que lhe toca as Variações de Goldberg de maneira veramente sobrehumana. A semente da arte de Glenn Gould não é vida para os seus antigos companheiros, não os potencia à sobrevivência, alimenta-lhes obcedamente a sua própria potência, corrompe-os, e é o delírio auto-destructivo que acaba por ser a manifestação última da influência do génio naqueles cuja alma era humana demasiado humana para conter sequer a possibilidade da existência dum génio daquela estatura. Um suicida-se. O outro passa o resto da vida a escrever um suposto mega-ensaio "Sobre Glenn Gould".

Suspeitamos que é o livro que lemos. Tal como nos promete, é menos sobre Glenn do que sobre a influência superlativa e quase hierática que a mera existência dele significa para o mundo. É um projecto falhado, tal como a Eneida d'A Morte de Vergílio é um projecto falhado, tal como a própria Morte de Vergílio é um projecto falhado, um alcance que contém em si o podre da própria inconsistência ontológica da arte que não pode existir, que não deve mortalmente existir. As Variações de Goldberg de Gould são aqui esse verme gigantesco, uma Medusa que aqueles não fadados a destruí-lo só podem olhar de relance e mesmo assim o risco é gigantesco. O autor não pode mais tocar piano, pode apenas, e rasteiramente, tentar chegar a alguma distância visível da interpretação das Variações, mas tal pode apenas ousá-lo projectando-se através da literatura, deste livro que é ele mesmo "Variações", numa falsidade e cobardia que só poderia ter uma saída. Poderíamos dizer, "Variações de Glenn Gould", ou mais concrectamente, "Variações sobre o Génio Destruidor de Glenn Gould". Só pode ser apenas mais um projecto falhado, porque não é uma expressão individual do génio em questão, é uma tentativa ressentida de alguém que vive de reflexos e de podre inveja: a única reacção possível, a única reacção humana verdadeiramente humana em confronto com uma perícia heróica que a transcende.

O tema desta "variação literária" é essa tarde em que Wertheimer, o amigo suicida do autor, ouve Glenn a tocar, e a percepção de que toda a sua vida culminará em desgraça. É esse tema diacrónico, trágico, que vai ecoando páginas contínuas do livro como uma sinfonia de morte. Temas menores vão-se desenvolvendo, enquanto a variação  se mantém, a tentativa de Joyce de transpor medidas musicais para a literatura no seu capítulo musical, na sua fuga per canonem, chega aqui a um ponto notável. Virá a morte e será uma variação musical sobre todos os teus falhanços, todas as provas de que terias sempre de ficar aquém, que não poderias jamais ser o melhor —sua, labora, virá a morte e o génio rir-se-á na tua cara.

O Náufrago, Thomas Bernhard. Relógio d'Água. Leopoldina Almeida (trad.)

21/11/2010

Apolo Primitivo

Assim como às vezes através dos ramos
inda sem folhas, a manhã espreita
já toda em primavera: assim na sua fronte
nada há que impedir possa que o fulgor

de todos os poemas venha a ferir-nos
quase de morte; pois não há inda sombra
no olhar; a fronte, fresca de mais, não pede louros,
e só mais tarde se lhe elevará

das sobrancelhas o alto rosal
cujas pétalas, soltas e dispersas,
flutuarão sobre o tremor da boca

que agora inda está calma, e brilhante e nova,
e a beber só gota a gota com o sorriso
como se lhe instilassem o cantar.


RilkePaulo Quintela (trad). Ediçõs Asa.




Este é a lembrar a conversa com o João, a Tatiana, e o Zé, precisamente sobre isto, precisamente sobre este poeta. Por vezes a literatura ousa um círculo.

20/11/2010

dolce ne la memoria #1

Romanza

Doce na memória
eleva-se a visão.
Sobre o Aventino ardia
lentamente o dia: uma glória

como se de rosas brancas
vertia o céu nas colinas
e cobria com a neve
mole todas as coisas.

Por baixo nuvens ténues
escorriam do rio:
pareciam, na luz ambígua,
riachos volúveis

que traziam nas suas manhas
navios fabulosos.
Diante, grandes e vermelhos
por entre ciprestes, os palácios

sobre as colinas imperiais
pareciam arder com fechados
fogos. Com um confuso
rumor profundo igual,

ruídos de obras humanas
ouviam-se da margem
vizinha; em Santa Sabina
guinchavam os sinos.

A paz serena,
a pia paz que amava
nos teus suaves céus,
ó Cláudio de Lorena,

estendia-se no ocaso,
chovia na alma esquecimento.
Vencido foi o meu ser
por aquele fascínio, e invadido,

e por completo daquele recente
prazer ainda cheio
(ó como, doce senhora,
era ardente a tua boca!),

ao alto ao alto, suspiro,
se lançava, esgotadas todas as guerras.
E parecia como que a terra
iluminasse o céu.


Romanza

Dolce ne la memoria
quella vista si leva.
Su l’Aventino ardeva
lento il giorno: una gloria

come di bianche rose
versava il ciel su ’l colle
e copría de la molle
neve tutte le cose.

A ’l pian nebbie leggere
si spandeano da ’l fiume:
parean, ne ’l dubbio lume,
volubili riviere

traenti in loro ambagi
favolosi navigli.
Dietro, grandi e vermigli
tra i cipressi i palagi

su ’l colle imperiale
parean arsi da chiusi
fochi. In un sol confusi
romor profondo eguale,

suoni d’opere umane
salían da la vicina
ripa; a Santa Sabina
squillavan le campane.

Una pace serena,
la pia pace che amavi
ne’ tuoi cieli soavi,
o Claudio di Lorena,

si spandea ne l’occaso,
piovea su’ cuori oblío.
Vinto l’essere mio
da quel fascino e invaso,

tutto de la recente
voluttà pieno ancora
(come, o dolce signora,
la tua bocca era ardente!),

all’alto all’alto, anélo,
tendea, spenta ogni guerra.
E parea che la terra
illuminasse il cielo.

d'Annunzio
tradução minha

16/11/2010

Vacas

Cows, de TS Eliot. (um poema com uma história especial)

Of all the beasts that God allows
In England’s green and pleasant land,
I most of all dislike the Cows:
Their ways I do not understand.
It puzzles me why they should stare
At me, who am so innocent;
Their stupid gaze is hard to bear —
It’s positively truculent.
I’m very inconspicuous
And scarlet ties I never wear;
I’m not a London Transport Bus,
And yet at me they always stare.
You may reply, to fear a Cow
Is Cowardice the rustic scorns;
But still your reason must allow
That I am weak, and she has horns.
But most I am afraid when walking
With country dames in brogues and tweeds,
Who will persist in hearty talking
And stopping to discuss the breeds.
To country people Cows are mild,
And flee from any stick they throw;
But I’m a timid town bred child,
And all the cattle seem to know.
But when in fields alone I stroll,
Oh then in vain their horns are tossed,
In vain their bloodshot eyes they roll —
Of me they shall not make their boast.
Beyond the hedge or five-barred gate,
My sober wishes never stray;
In vain their prongs may lie in wait,
For I can always run away!
Or I can take sanctuary
In friendly oak or apple tree.

14/11/2010

"I'm convinced your good nuns believed what they preached to you, but faith mustn't ever be more than an hour old! That's the point!"

Herr Musil

08/11/2010

Amo-te: a última palavra

Adorável é o traço fútil de uma fadiga, que é a fadiga da linguagem. De palavra em palavra, afadigo-me em experimentar diversamente o que é próprio da minha Imagem, impropriamente o que é próprio do meu desejo: viagem no termo da qual a minha filosofia última não pode deixar de reconhecer --e de praticar-- a tautologia. É adorável o que é adorável. Ou ainda: adoro-te porque és adorável, amo-te por te amo. O que assim encerra a linguagem de amor é exactamente o mesmo que a instituiu: o fascínio. Pois descrever o fascínio não poderá afinal ultrapassar este enunciado: "estou fascinado". Atingido o termo da linguagem, onde não é permitido repetir senão a última palavra, à maneira de um disco riscado, satisfaço-me com a sua afirmação: não será a tautologia este estranho estado onde se encontrou, confundidos todos os valores, o glorioso final da operação lógica, o obsceno do disparate e a explosão do sim nietzschiano?

Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso

quand je suis enamoré je ne parle que français


31/10/2010

Trevas e não Luz

Ai daqueles que desejam ver o dia do Senhor!
Que será para vós o dia do Senhor?
Trevas e não luz.

Como aquele que escapa de um leão,
mas dá de encontro com um urso;
ou que volta para casa,
mas ao tocar com a mão na parede é mordido pela serpente,

sim, o dia do Senhor será trevas e não claridade,
escuridão, e não luz.

Aborreço as vossas festas; elas desgostam-me;
não sinto gosto algum nos vossos cultos;

quando me ofereceis holocaustos e ofertas,
não encontro neles prazer algum,
e não faço caso dos vossos sacrifícios e animais cevados.

Longe de mim o ruído dos vossos cânticos,
não quero mais ouvir a música das vossas harpas;

mas, antes, que jorre a equidade como uma fonte
e a justiça como uma torrente que não seca.

Amós 5.18-24. Editorial Missões.

The lion hath roared

The lion hath roared, who will not fear?
the Lord GOD hath spoken, who can but prophesy?

Amos 3:8, KJV

28/10/2010

Fala-me da Morte e de Veneza

— De lá o homem parte e cavalga três dias entre o gregal e o Levante… — recomeçava Marco, e a enumerar nomes e costumes e comércios de um grande número de terras. O seu repertório podia dizer-se inesgotável, mas agora foi a sua vez de se render. Era de madrugada quando disse: — Sire, já te falei de todas as cidades que conheço.
— Falta uma de que nunca falas.
Marco Polo baixou a cabeça-
— Veneza — disse o Kan.
Marco sorriu. — E de qual julgavas que eu te falava?
O imperador nem pestanejou. — Mas nunca te ouvi dizer o seu nome.
E Polo: — Sempre que descrevo uma cidade digo qualquer coisa de Veneza.
— Quando te pergunto por outras cidades, quero ouvir-te falar delas. E de Veneza, quando te perguntar por Veneza.
— Para distinguir as qualidades das outras, tenho de partir de uma primeira cidade que está implítica. Para mim é Veneza.
— Deverias então começar todos os relatos das tuas viagens pelo princípio, descrevendo Veneza tal como é, toda, sem omitir nada do que dela recordas.
As águas do lago tinham-se encrespado um pouco; o reflexo dos ramos do antigo palácio dos Sung quebrava-se em reverberações cintilantes como folhas a boiar.
— As imagens da memória, depois de fixadas com as palavras, apagam-se — disse Polo. — Talvez eu tenha medo de perder Veneza toda de uma vez, se falar dela. Ou talvez, ao falar de outras cidades, já venha a perdê-la pouco a pouco.

Italo Calvino. As Cidades Invisíveis. José Barreiros (trad.) Teorema (1990).


They still avoided him as a topic of conversation, because mere words were liable to detract from what they saw as an exalted feeling in their hearts. This reluctance to talk about him meant that they were gradually forgetting him, though they would never have believed it.

Tolstoy. War and Peace. Anthony Briggs (trad.). Penguin. (2006)


27/10/2010

fanatismo

É nos mais cultos que se encontra o fanatismo, porque o homem é culto a partir do momento em que se interessa pelas coisas espirituais, e este interesse pelo espiritual, se for vivo, é precisamente o fanatismo, e tem de o ser: é um interesse fanático pelo sagrado (fanum*).

* Templo, lugar consagrado a uma divindade.


Max Stirner, O Único e a sua Propriedade. João Barrento (trad.) Antígona. (2004)

junho

não direi da morte o súbito rumor
é mais do que isso o que se sente em junho
o estar e não saber onde nos crescem as raízes
que ao olhar não chegam mas a língua invoca

Diogo Pires Aurélio, a herança de hölderlin. Assírio e Alvim.(1978)

26/10/2010

Gonçalo M. Tavares

O GMT é o nosso fuso horário.


Latim Jurídico

Há cerca de 1 ano estive a partilhar um apartamento com um caro colega que estava vindo do Brasil a fazer uma pós-graduação em Direito. Felizmente não nos cruzávamos muitas vezes, mas das poucas em que falámos ficou no ar que ah e tal eu estudava latim e que ele ah e tal me precisava de pedir umas traduções. Tudo muito bem. Assumo eu que se trata de palavras ou expressões técnicas em latim que ele fosse encontrando nos livros. Com o maior gosto. Um dia descubro passada por baixo da porta a seguinte nota (todos os erros são [sic]):


Oi miguel, poderia traduzir essas palavras para o latin?

Grato
[Nome]

Vossa excelência
Peço
Requeiro a vossa/sua excelência
Incontestável
Contestável
Calate!
Obrigado/Desculpa
Amo-te/Odeio-te
Incontestavalmente culpado
Induvidavelmente culpado
Cara a cara
Perguntando lhe a verdade
Que se cumpra a verdade
Verdade acima de tudo


Fiquei assim parvo e durante 2 semanas estive "com algumas dificuldades a traduzir". O que foi excelente, porque depois desse período por alguma razão ele foi-se embora. Não que a ideia de ver um tipo não particularmente inteligente a bradar numa sala de tribunal "FIAT VERITAS" com ar de cólera divina não tenha a sua piada enquanto exercício mental, mas infelizmente o mundo terá de passar sem isso.

o Cardeal Bernardino Spada, por Guido Reni

A Revolução Faz-se Sem Wagner


Wagner is a classic example of someone who, when young, is a passionately committed and active left-wing revolutionary, but then becomes disillusioned with politics and turns away from it altogether in middle age. Former comrades who retain their left-wing commitment usually see such a person as 'moving to the right', and of course some do, they become conservatives. But in most cases this is an uncomprehending way of seeing what is happening. For most such people are not switching from one political allegiance to another, they are becoming disillusioned with politics as such. They are acquiring a different sort of outlook on life, one that does not see politico-social issues as primary. And this is what happened to Wagner.He did not 'move to the right' in the sense of becoming a conservative: never at any time in his life was he conservative in his views or attitudes: to the end of his days he remained radically critical of the society he knew, and never from a right-wing point of view. But he became disillusioned, and bitterly so, with the possibilities of idealistic change. The unforgiving bitterness of the disappointed left-winger is a quite different phenomenon psychologically from the curmudgeonliness of the reactionary, even if in elderly people the two often show some of the same symptoms. One is bitterness at the loss of a past, the other bitterness at the loss of a future. What they have in common is dislike of the present, but in one case this is based on traditional values and in the other on the pain of having relinquised hopes for a radically different future. Be all this as it may, Wagner certainly ceased to be a revolutionary, or a socialist, or anything other than a spasmodic and atavistic devotee of the residual values of failed leftism in the later part of his life, without becoming conservative or right-wing or reactionary — none of the last three epithets ever applied to him. His significant movement was not from left to right but from politics to metaphysics.

Bryan Magee, The Tristan Chord. Metropolitan Books. (2000)

Gary Lehman enquanto Tristão, daqui.

12/10/2010

Amazon e Portugal

bárbaros. bárbaros!

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Fonte.
 

04/10/2010

Duas Esperanças

O facto de não conseguirmos jamais deixar de esperançar das gerações futuras é simultaneamente o nosso grande erro e a nossa única possibilidade de esperança. O que torna a esperança o nosso grande erro, sim, mas isso já Zeus e Pandora sabiam quando esta se apercebeu que, do jarro dos males, apenas a esperança restou segura e pronta. Pronta significa: prestes a dar-se, prestes a oferecer-se como positiva. Ninguém, a não ser num leibnizianismo por vezes tão engenhoso quanto aparentemente tonto, se atreveria a dizer que a guerra é boa porque trará eventualmente consequências --ou resultados matematicamente apurados-- positivas. Ou as doenças, ou as traições. Mas a esperança é a auto-ilusão que permite a nobre mentira de ser auto-causada: a nobre mentira que é a ilusão tão maior quanto mais necessária. Há duas noções de esperança. Uma é a noção latina de esperança enquanto sperantia. A noção grega, a élpis, é helein-pístis, no sentido de tomar a fé enquanto um tomar duplo: eu não me limito a esperar que as coisas aconteçam, tomo também uma acção. Nascemos todos com a maior promessa da humanidade presa dentro de nós. Élpis significa: retirar essa promessa de dentro de nós, assumir a impossibilidade de dela tomarmos conta, de a ela fazermos justiça, e pergar-lhe, transformá-la na fé de quem pega em sementes de mão aberta e espera que a respiração divina as espalhe pelo mundo. Mas este é um dia de verão, e a terra está demasiado quente, não há vento que as leve nem água que as regue se as deixar cair. A élpis é saber que esta terra não dá, mas que talvez outras dêm; é saber que eu não posso chegar a essas terras porque sou apenas humano e não posso atravessar oceanos. Posso apenas ir passado as sementes em sucessão para as aproximar duma terra desconhecida que nem eu sei onde é, mas chegará uma altura em que a mais vindoura das gerações terá de esperar, de mão aberta ao espírito, para que ele espalhe pelo mundo a possibilidade da geração. Os deuses precisam de nós, mais até do que nós precisamos deles. A humanidade pode viver sem esperança, era alguma da humanidade desacreditou esse truísmo, e por muito que os filósofos condenem este estado meramente apetitoso de se Ser humano não há nada que eles possam oferecer como verdadeiro fundamento para uma outra acção -- se somos humanos, tanto podemos ser bestas quanto sobrehumanos, tanto se nos dá, e não é a arrogância do profeta que pode absolutizar: o humano é a extrema liberdade para o auto-inferno ou para o paraíso adiado para além do limite da nossa morte. Mas o deus não pode reagir assim. O deus sem um ser huamano a quem dar futuro é como a palavra de que não nos conseguimos lembrar no momento oportuno da conversa, aquela palavra exacta que traria o logos a bom porto. O deus precisa do ser humano porque precisa de destruir o ser humano para oferecer um novo ser à terra, uma geração futura de criações. Mas a semente dessa nova geração jaz nas mãos do ser que neste momento jaz no meio do deserto com um punhado de sementes dentro da mão cerrada, como um conceito positivo. A ele cabe o futuro do deus. Pode continuar no deserto para sempre, em cujo caso o deus provavelmente morrerá, ou pode ficar no deserto com a mão aberta, como um sacerdote de Athos-- esta é a esperança enquanto sperantia, benevolente e perfeitamente suficiente para uma época que ainda cria na omnipotência de deus; Deus precisaria apenas que o ser humano quisesse que a humanidade fosse salva para que Ele quisesse providenciar. O nosso tempo já não crê nessa omnipotência; quer isso se deva a essa omnipotência ter desaparecido ou nunca ter sequer existido é irrelevante. Agora, o ser humano pode ainda caminhar numa qualquer direcção para tentar ajudar o deus. Claro que não há qualquer garante que esteja sequer a andar numa direcção benfazeja para com os desígnios desse espírito, as pegadas podem até até estar a afastá-lo do oceano, daquele que dá memória do deus e oferece promessas do humano. Mas esse tomar-fé, essa élpis, é também tomar fé de que pode estar a ir na direcção certa, que quando o espírito soprar esse talvez possa até usar as pegadas do caminhante do deserto para se orientar a ele mesmo. Esta é a esperança mais difícil, é a esperança da virtude da dádiva do humano ao deus para a salvação deste e para a destruição de si. Ambas são pesadas como uma respiração ofegante.

Há piores metáforas

Martin Heidegger é o grande mestre do espanto, o homem cujo assombro perante o facto concreto de que somos em vez de não sermos, instalou um obstáculo radiante no caminho do óbvio. O seu pensamento é um pensamento que torna imperdoável a condescendência, mesmo momentânea, para com o facto da existência. Na clareira da floresta a que conduzem os seus caminhos circulares, embora não a alcancem, postulou Heidegger a unidade do pensamento, da poesia, e desse acto qe é o acto mais elevado de orgulho mortal e de celebração, que é o dar graças. Há piores metáforas segundo as quais podemos viver.

George Steiner, Heidegger. João Paz (trad), Dom Quixote. 1990.

27/09/2010

o rei vai nu #2

"It's a battle between the gods, giants, mortals, over gold."

erudita descrição do Der Ring des Nibelungen. Aqui.

26/09/2010

O rei vai nu, sim, mas tem uma figura gira.

european men, stay put. seriously, nothing good ever happens to you when you leave whatever small european town you are from and venture into the wider world. whether it is gide and tunisia, conrad and the congo, robbe-grillet with wherever that was, various graham greenes; statistically, there will be temptations which you are not equipped to resist and you will either succumb or drive yourself to humiliation and despair with the wanting to succumb. and i totally get it - different surroundings, absence of judgmental peer group, it's vacation morality. when i was in prague, i totally stole a guinness mug from the irish pub i fell in love with. so i am no stranger to a wild life of crime and transgression. i left the children alone, though...
(for the record, lawrence durrell is totally exempt from this advice, although since he is dead, it doesn't really matter.)
and just so we're clear - i only read death in venice. the other seven stories can go screw for now - this is just book club fare, and if i have time in my life to read more troubled intellectual germans, i will know where to turn. but for now, i must bake book club cake and enjoy my free snow day.

Duma crítica a uma edição d' A Morte em Veneza e Outros Contos. Hah!

22/09/2010

A Rainha da Noite

A ópera é sincronização de tudo o que nela entra: o drama complemente o texto que complementa a música (que no entanto assume o papel preponderante, são "As Bodas de Fígaro" de Mozart e não de Lorenzo della Ponte, por exemplo). Quando isso não acontece, poderíamos dizer que a falha em algum aspecto: o equilíbrio que une os elementos deixa de existir, a colagem torna-se frágil, e a música passa a tornar-se uma simples desculpa para o teatro, ou o teatro uma simples desculpa para a música coral. Quando Verdi recebeu a notícia de que uma cantora sua favorita iria estrear o papel de Lady Macbeth, escreveu até uma carta a protestar, "ela canta demasiado bem [...] Lady Macbeth é maléfica, devia cantar mal, até não cantar de todo".

—//

A Flauta Mágica tem apenas uma vilã significativa, a Rainha da Noite. Que quando não está a enviar cavaleiros incautos para servir inconscientemente os seus desígnios está a ordenar à filha que assassine o pai: este paragono do mal que não pode ser refutado: Como é que se poderia ser pior que isto?

A vingança infernal arde no meu peito,
Morte e desespero incendiam-se à minha volta!
Se Sarástro não sentir graças a ti a dor da morte,
Deixarás para sempre de ser a minha filha
Deserdada serás para sempre
Abandonada serás para sempre
Destruída serás para sempre
Todos os laços da natureza
Se não fizeres Sarástro empalicer!
Ouvi, deuses da Vingança, ouvi o juramento duma mãe!

Apresentada aqui, a partir de 2:02


O culminar da ária está entre a linha 4 e 5 (a linha que ela repete é "So bist du meine Tochter nimmermehr", "Deixarás para sempre de ser a minha filha", mas aqueles Sis não são verbalmente articulados), ou seja, precisamente na linha onde se condensam todos os pecados dramáticos da Rainha, que mete lá para o meio satanismo, parricídio, filicídio, e sei lá eu mais o quê, Mozart (à revelia claro do texto do libretto) escreve uma profunda elevação musical. O mal aqui é redimido pela sua beleza estética, e sendo esteticamente superior é portanto moralmente superior.

Não se pode ler a ópera toda a partir deste passo  de qualquer modo, logo a seguir à saída da Rainha entra Sarastro, que consola a filha explicando-lhe quão maléfica a mãe é  mas se Mozart pretendeu escrever a música para um mundo de bem/mal (e seríamos levados a crer que sim), o seu génio traiu-o: se a invocação às divindades da Rainha da Noite é de este poder, o de Sarastro, um hino a Ísis e a Osíris, a torcer pelo lado da iluminação e do esclarecimento [maçónico], apesar de majestoso, não pode deixar de ser um bocadinho pãozinho sem sal quando comparado. Até na memória duma civilização, a Rainha vencida triunfou sobre o seu luminoso vencedor.

21/08/2010

Geoffrey Hill 1 Camões 0

Pavana Dolorosa

Loves I allow and passions I approve:
Ash-Wednesday feasts, ascetic opulence,
the wincing lute, so real in its pretence,
itself a passion amorous of love.

Self-wounding martyrdom, what joys you have,
true-torn among this fictive consonance,
music's creation of the moveless dance,
the decreation to which all must move.

Self-seeking hunter of forms, there is no end
to such pursuits. None can revoke your cry
Your silence is an ecstasy of sound

And your nocturnals blaze upon the day.
I founder in desire for things unfound.
I stay amid the things that will not stay.

Geoffrey Hill, Tenebrae

20/08/2010

I rhyme / I write / / Heaney/Hill

XXIII

Not all palimpsests are this eroded
to mý mind. A late sun buffs the granite.
Autumn lies lightly earthed, her funerals
the yellowed reddle blown bare, still abundant.
Should I say só much for Elijah's
chariot blessing these banked fires? If that
were even half-true I could give my name
to rehabilitation. Bien-aimées,
this calls for matching alchemies to make
gold out of loss in the dead season:
Petrarch revived by CHAR, though not
in so many words, la flamme sous l'abri,
the curfew-flame, uncovered. Frénaud,
bleakly resplendent. Where are you fróm?
I said; and he said, Montceau-
Montceau-les-Mines.

Once you ask that you can direct this,
objectivy fear, sorrow; the well-placed
lip-readers of failure now succeed.
Last days, last things, loom on: I write
to astonish myself. So much for all
plain speaking.
Enter
sign under signum, I should be so lucky,
false cadence but an ending. Not there yet.

Geoffrey Hill, The Orchards of Syon



Personal Helicon

for Michael Longley

As a child, they could not keep me from wells
And old pumps with buckets and windlasses.
I loved the dark drop, the trapped sky, the smells
Of waterweed, fungus and dank moss.

One, in a brickyard, with a rotted board top.
I savoured the rich crash when a bucket
Plummeted down at the end of a rope.
So deep you saw no reflection in it.

A shallow one under a dry stone ditch
Fructified like any aquarium.
When you dragged out long roots from the soft mulch
A white face hovered over the bottom.

Others had echoes, gave back your own call
With a clean new music in it. And one
Was scaresome, for there, out of ferns and tall
Foxgloves, a rat slapped across my reflection.

Now, to pry into roots, to finger slime,
To stare, big-eyed Narcissus, into some spring
Is beneath all adult dignity. I rhyme
To see myself, to set the darkness echoing.


Seamus Heaney, Death of a Naturalist. Faber&Faber. 1991

It's A Book

Digam lá se não basta para persuadir.

Lachrimae Antiquae Novae

There are certainly other elements at play that prevent the high esteem for Hill from translating to the poetry arriving in readers’ well-prepared hands. Notable among them, I believe, is Hill’s honest, intellectual, and unfashionable engagement with religion and the Christian tradition. His unabashed faith is a faux pas in the age of postmodernism. It is an element to be dismissed, or questioned, or patronized, but not to be given justice as a meaningful basis for poetry. This irreligious posture is a bias that is stronger in circles of “serious poetry” than in the culture at large, but, within that subgroup of critics, is acceptable and widespread: in an April 2009 review of Paul Mariani’s Gerard Manley Hopkins: A Life, Denis Donoghue in The New Criterion scolds Mariani for not scrutinizing whether Hopkins’ vocation hampered his poetic gifts. One can infer that Donoghue’s opinion was in the affirmative, and I believe a “flaw” similar to that of Hopkins would be found by many critics in the work of Geoffrey Hill.

I admit that Hill’s unabashed expressions of faith were an obstacle for me as well. Because of the religious themes, I was disinclined to return to the poems, to struggle with the difficulties of a poet whose philosophical premises were so unlike, even antithetical to, my own. However, I did eventually come to realize that my irreligious disposition is a prejudice to be overcome, not unlike any other. It is foolish to wish that the work were otherwise, as Donoghue seems to do of Hopkins. Hill’s work can as little be separated from his religious nature as wetness could from water: one is the essence of the other, the texture of its existence. What I happily discovered, once I overcame that dissonance in myself, was the sheer power of his work. This is not the story of a religious conversion. I remain now the way I began, but I had to forcibly open myself to the possibility of an engagement — intellectual, emotional, aesthetic — with such spiritual and religious poetry. Like his great influence Gerard Manley Hopkins before him, the value of Hill’s work is as much in the elaboration of a brilliant mind considering matters of faith as it is in his poetic language and its willfully crafted power.

Still, it is true that the poems are extremely dense, difficult, and complex. What ought to give readers hope in the face of their confusion is that the density one finds in this work is not ad hominem, does not refer to an inaccessible interior life. As W.H. Gardner wrote in his Introduction to the Fourth Edition of Hopkins’ complete poems, “His dark passages are never entirely opaque, and the meaning, when it is made out, will usually (as he said it should) ‘explode’.” It was true of Hopkins as it is of Hill, and in this way Hill's work stands apart from that of his contemporaries: the impenetrability of many modern poets is due in large part to the use of language as an abstract medium like paint, clay, or music; Hill remains emphatic that the fundamental role of language is communication and expression, no matter how difficult the form.


Crucified Lord, so naked to the world,
you live unseen within that nakedness,
consigned by proxy to the judas-kiss
of our devotion, bowed beneath the gold,

with re-enactments, penances foretold:
scentings of love across the wilderness
of retrospection, wild and objectless
longings incarnate in the carnal child.

Beautiful for themselves the icons fade;
the lions and the hermits disappear.
Triumphalism feasts on empty dread,

fulfilling triumphs of the festal year.
We find you wounded by the token spear.
Dominion is swallowed with your blood.

Geoffrey Hill, in Tenebrae

Ainda a propósito de flores e de neve

Veni Coronaberis*

A Garland for Helen Waddell


The crocus armies from the dead
rise up; the realm of love renews
the battle it was born to lose,
though for a time the snows have fled

and old stones blossom in the south
with sculpted vine and psaltery
and half-effaced adultery
the bird-dung dribbling from its mouth

and abstinence crowns all our care
with martyr-laurels for this day.
Towers and steeples rise away
into the towering gulfs of air.

Geoffrey Hill


* "Vem e serás coroada"

14/08/2010

Neve em Flor


Metade da Vida

Com pêras douradas pende
E repleta de rosas bravas
A terra sobre o lago,
Vós queridos cisnes,
E ébrios de beijos
Mergulhais a cabeça
Na água sacra e sóbria.

Ai de mim, onde encontrarei eu, quando
For inverno, as flores, e onde
A luz do sol
E a sombra da terra?
Os muros stão
Silenciosos e frios, com a ventania
Guincham os cataventos.

Hälfte des Lebens

Mit gelben Birnen hänget
Und voll mit wilden Rosen
Das Land in den See,
Ihr holden Schwäne,
Und trunken von Küssen
Tunkt ihr das Haupt
Ins heilignüchterne Wasser.

Weh mir, wo nehm' ich, wenn
Es Winter ist, die Blumen, und wo
Den Sonnenschein,
Und Schatten der Erde?
Die Mauern stehn
Sprachlos und kalt, im Winde
Klirren die Fahnen.

Friedrich Hölderlin. Tradução minha.



A Primavera começou, então, a surpreender os hóspedes que davam os seus passeios regulamentares pelo vale, produzindo fénomenos maravilhosos, dignos de um conto de fadas, coisas nunca antes vistas. No sopé do Schwarzhorn, cujos cumes em forma de cone, ainda completamente nevados, formavam o cenário de fundo da paisagem, estendia-se um prado amplo. À direita, quase pegado, erguia-se o glaciar da Scaletta, igualmente coberto de neve espessa, tal como todo o campo, com a sua meda de feno ao meio, apesar de a camada já se ter tornado um pouco mais fina e rala, salpicada aqui e ali de montículos toscos e escuros da terra e perfurados em todo o lado por erva seca. Contudo, durante a caminhada, os pacientes notaram que a neve não se distribuia uniformemente pelo prado - à distância, vista contra a encosta das montanhas, contra a floresta que se erguia, a camada parecia bastante densa, mas quando olharam mais de perto, quando a neve surgiu diante dos seus olhos, perceberam que a erva que no Inverno ressequira e descurara e apenas estava pintalgada, estremeada, floreada pelos flocos de neve... Debruçaram-se, curiosos, para ver melhor, para ver de perto, e aperceberam-se de que não era neve mas sim flores, flores de neve ou neve às flores, pequeninos cálices em talos curtos, brancos e azulados. Eram crocos, sem tirar nem pôr, milhões de crocos que haviam despontado no prado resumbrante, tufos e tufos cerrados de crocos que facilmente se confundiam com neve e com a qual, na verdade, também se misturavam pelo campo fora.

Thomas Mann, A Montanha Mágica, Dom Quixote, Gilda Lopes Encarnação (trad), 2009



À hora de jantar fui passear à beira-rio, porque não tinha fome. Tudo à minha volta me parecia tenebroso: um vento frio e húmido de Leste soprava das montanhas, e nuvens negras e pesadas espalhavam-se pela planície. Eu observava à distância um homem com um casado esfarrapado: caminhava por entre os rochedos, e parecia estar à procura de plantas. Quando me aproximei, virou-se na direcção do meu barulho; e eu reparei que ele tinha uma rosto interessante no qual era predominante uma melancolia resignada marcada intensamente por benevolência. Visto que as suas vestes denunciavam alguém duma ordem menor, pensei que ele não se importaria se eu lhe perguntasse ao que andava; e perguntei-lhe então o que é que ele procurava. Ele respondeu, com um suspiro profundo, que estava à procura de flores, e não conseguia encontrar nenhumas. "Isso é porque não estamos na estação delas," fiz-lhe eu notar.

Goethe, Werther

25/07/2010

Facebook e Ezra Pound

Quase que posso apostar que esses dois nunca antes se viram juntos de forma tão perfeita.


"Music begins to atrophy when it departs too far from the dance; poetry begins to atrophy when it gets too far from music."

Ezra Pound, The ABC of Reading


12/07/2010

We are the hollow men
We are the stuffed men
Leaning together
Headpiece filled with straw. Alas!
Our dried voices, when
We whisper together
Are quiet and meaningless
As wind in dry grass
Or rats' feet over broken glass
In our dry cellar
Shape without form, shade without colour,
Paralysed force, gesture without motion;
Those who have crossed
With direct eyes, to death's other Kingdom
Remember us - if at all - not as lost
Violent souls, but only
As the hollow men
The stuffed men.

The Hollow Men I, T.S. Eliot



Ed elli a me: "Questo misero modo
tegnon l'anime triste di coloro
che visser sanza 'nfamia e sanza lodo.

Mischiate sono a quel cattivo coro
de li angeli che non furon ribelli
né fur fedeli a Dio, ma per sé fuoro.

Caccianli i ciel per non esser men belli,
né lo profondo inferno li riceve,
ch'alcuna gloria i rei avrebber d'elli".

E io: "Maestro, che è tanto greve
a lor che lamentar li fa sì forte?".
Rispuose: "Dicerolti molto breve.

Questi non hanno speranza di morte,
e la lor cieca vita è tanto bassa,
che 'nvidïosi son d'ogne altra sorte.

Fama di loro il mondo esser non lassa;
misericordia e giustizia li sdegna:
non ragioniam di lor, ma guarda e passa".

Inferno, III 34-51

03/07/2010

Decadência filológica

Disse Deus a Jesus, E por que hei-de eu saber dos assuntos do Diabo, Sendo Deus, tens de saber tudo, Até um certo ponto, só até um certo ponto, Que ponto, O ponto em que começa a ser interessante fazer de conta que ignoro.

José Saramago, Evangelho Segundo Jesus Cristo, pg366

Sinal de decadência filológica (ou: "There is something in philology that appeals to the worst in man."- Steiner) : estar a ler um texto português, neste caso Saramago, ficar a olhar para a página e por microssegundos pensar, "Isto é genial. Tenho de ir já ver o que é que diz o original grego." E aperceber-me de que é com um sabor a desilusão que compreendo que neste caso "não há" original.

Sem psalmos à altura

Jerusalém, Jerusalém, gritam os devotos viajantes à vista da cidade, de repente levantada como uma aparição no cimo do morro do outro lado, além do vale, cidade em verdade celeste, centro do mundo, agora despedindo mil centelhas em todas as direcções, sob a luz forte do meio-dia, como uma coroa de cristal, mas que sabemos se tornará em ouro puro quando a luz do poente lhe tocar e será branca de leite sob o luar, Jerusalém, ó Jerusalém. O Templo aparece como se nesse mesmo momento Deus ali o tivesse pousado, e o súbito sopro que percorre os ares e vem roçar a cara, os cabelos, as roupas dos peregrinos e viajantes é talvez o movimento do ar deslocado pelo gesto divino, que, se olharmos com atenção as nuvens co céu, podemos ver a imensa mão que se retira, os longos dedos sujos de barro, a palma onde estão traçadas todas as linhas de vida e de morte dos homens e de todos os outros seres do universo, mas também, é tempo que se saiba, a linha da vida e da morte do mesmo Deus. Os viajantes levantam ao ar os braços que tremem de emoção, as bênçãos saltam, irresistíveis, não já em coro, cada qual entregue ao seu arrebatamento próprio, e alguns, por natureza mais sóbrios nestas místicas expressões, quase não se movem, olham o céu e pronunciam as palavras com uma espécie de dureza, como se neste momento lhes fosse consentido falar de igual para igual ao seu Senhor.

José Saramago, Evangelho Segundo Jesus Cristo. pg72.

27/06/2010

Ezra Pound do Dia #4


Imagens inéditas do novo filme inspirado na obra de JRR Tolkien, The Hobbit, com Pound no papel de Gandalf

20/06/2010

Dois que vão bem juntos

Dei por mim a folhear o meu volume do Paul Celan enquanto esta música tocava nos meus ouvidos. E apercebi-me do quão bem os dois vão juntos.



Tübingen, Janeiro

Olhos con-
vertidos à cegueira.
A sua —«são
um enigma as puras
origens»—, a sua
memória de
torres de Hölderlin flutuando no esvoaçar
de gaivotas.

Marceneiros afogados visitando
estas
palavras a afundarem-se:

Se viesse,
se viesse um homem,
se viesse um homem ao mundo, hoje, com
a barba de luz dos
patriarcas: só poderia,
se falasse deste
tempo, só
poderia
balbuciar balbuciar
sempre,sempre,
só só.

(«Pallaksch. Pallaksch.»)

Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde, João Barrento (trad.), Cotovia (1996)