25/11/2012

[sem título mas com deuses]

He found my Being — set it up —
Adjusted it to place —
Then carved his name — upon it —
And bade it to the East

Be faithful — in his absence —
And he would come again —
With Equipage of Amber —
That time — to take it Home —

Emily Dickinson. [603]. The Complete Poems. Faber & Faber (1970).

Now, and for us, it is a time to Hellenise, and to praise knowing.

Now, and for us, it is a time to Hellenise, and to praise knowing; for we have Hebraised too much, and have over-valued doing. But the habits and discipline received from Hebraism remain for our race an eternal possession; and, as humanity is constituted, one must never assign them the second rank to-day, without being ready to restore them to the first rank to-morrow. To walk staunchly by the best light one has, to be strict and sincere with oneself, not to be of the number of those who say and do not, to be in earnest,—this is the discipline by which alone man is enabled to rescue his life from thraldom to the passing moment and to his bodily senses, to ennoble it, and to make it eternal. And this discipline has been nowhere so effectively taught as in the school of Hebraism. Sophocles and Plato knew as well as the author of the Epistle to the Hebrews that "without holiness no man shall see God," and their notion of what goes to make up holiness was larger than his. But the intense and convinced energy with which the Hebrew, both of the Old and of the New Testament, threw himself upon his ideal, and which inspired the incomparable definition of the great Christian virtue, Faith,—the substance of things hoped for, the evidence of things not seen,—this energy of faith in its ideal has belonged to Hebraism alone. As our idea of holiness enlarges, and our scope of perfection widens beyond the narrow limits to which the over-rigour of Hebraising has tended to confine it, we shall come again to Hebraism for that devout energy in embracing our ideal, which alone can give to man the happiness of doing what he knows. "If ye know these things, happy are ye if ye do them!"—the last word for infirm humanity will always be that. For this word, reiterated with a power now sublime, now affecting, but always admirable, our race will, as long as the world lasts, return to Hebraism; and the Bible, which preaches this word, will forever remain, as Goethe called it, not only a national book, but the Book of the Nations. Again and again, after what seemed breaches and separations, the prophetic promise to Jerusalem will still be true:—Lo, thy sons come, whom thou sentest away; they come gathered from the west unto the east by the word of the Holy One, rejoicing in the remembrance of God.

Matthew Arnold. Culture and Anarchy [Preface]. 

04/11/2012

Tolkien e Janáček

Os meus conhecimentos de música são extremamente parcos, e será certamente esse uma das causas para eu não conhecer ópera mais corajosa que a Na Casa dos Mortos do Janáček. Nem alguém que jamais tenha música composto que a iguale em heroísmo. O possível concorrente, naturalmente Beethoven, está ainda presente num mundo onde esse heroísmo, mesmo se por 'heroísmo' entendermos o do herói isolado, mesmo que o heroísmo dum mundo que funcione a contra-corrente, que não o "aprecie", suscita ainda uma resposta da parte do mundo, seja de avassalação seja de rejeição: o heroísmo é ainda parte activa ou reactiva do mundo.

Janáček já não é capaz de viver esse mundo; aqui o titanismo das Symphonias, de algumas das Sonatas para Piano (do Fidelio?), deixou de se conseguir inserir. Aqui não não há mundo para o combate do espírito, talvez por o mundo estar desencantado ou talvez por desencantado estar o próprio herói. Mas aqui entra o paradoxo de Na Casa dos Mortos, algo extremamente evocativo do conceito que Tolkien exprime no ensaio Beowulf: The Monsters and the Critics: o do heroísmo pagão, algo que em termos de sheer nobility ultrapassa em muito o Übermensch nietzscheano — na medida em que este último está dependente do Eterno Retorno do Mesmo para dele derivar a sua valorização refundada, que de outro modo ameaçaria ser despedaçado pela inversão de todos os valores da qual ele próprio é origem e consequência.

O conceito de nobreza de Tolkienano tem então Beowulf, o rei do poema, como expoente máximo, pois por muito que o próprio Tolkien o tentasse transferir para a sua saga, em última instância falha — se ele foi tão bom em auto-crítica quanto o foi em filologia, teria sido capaz de apontar a si mesmo que tentara recriar uma éthica pagã num mundo impregnado de Christianismo. So win, who may, glory ere death. Esta nobreza é o beco-sem-saída da glória pessoal que não espera testemunhas, não espera recompensas, não espera agradecimentos, e certamente não espera vida eterna. O Christianismo levou isto apenas até um ponto quando Mateus sugere que a mão esquerda esconda da direita o bem que fizer [MT 6:3]; tivesse ficado por aqui e estaríamos ao mesmo nível absurdo da Edda Poética e do Beowulf. Mas, como a Hannah Arendt rectamente aponta, o Christianismo entendeu que a virtude praticada a tão alto nível seria insuportável não houvesse o garante mýstico de que Deus está a ver as nossas boas acções, mesmo quando (ou se calhar apenas quando) ninguém está a ver. Depende da visão de Deus, da companhia solitária da divindade.

Beowulf não pretende glória depois da morte. Pretende glória até à [usque ad ] morte. Daí a coroa da sua vida não ser um monumentum aere perennius, não ser a colinha vislumbrada à distância com que os navegantes se lembrariam delemas sim uma pira — como a de Aquiles e a de Pátroklo (cuja glória também não é o enterro mas sim os jogos, como o souberam Alexandre e Ájax). A música que exprime isto não pode ser a música desesperada dum Bartok nem a desistência perante a dignidade humana dum John Cage, mas sim a música que olhe o abysmo nos olhos, e que apesar de nele reconhecer os seus próprios traços se recusar a incorporar-se nele — antes de chegada a hora.

Daí ser também extremamente congruente que a obra que dê expressão musical a esta ideia seja baseada num texto de Dostoyevsky. Quem mais que Dostoyevsky compreendeu avant-la-lettre o dito de Simone Weil que "Deus é, portanto não pode existir"? Quem mais foi christão com essa coragem? Mas para o Christianismo de Dostoyevsky se tornar heróico precisou de perder a fé, precisou de perder Deus - e para isto foi preciso a música. Janáček toma-o, assume-o  e esmaga-o, o seu atheísmo é o medium perfeito para compreender o mais perfeito christão que alguma vez viveu. É desta união perfeita que nascerá também a Missa Glagolítica, que como tal jamais poderia ter sido escrita por alguém ainda em posse de fé, mas também jamais poderia ter sido escrita por alguém a quem a dignidade humana, a quem ouso aqui chamar heroísmo, se tivesse tornado já inexistente ou até mesmo indiferente. Estas obras de arte nascem não do desencantamento do mundo mas sim dá paganização das virtudes theologais: Aquelas esperança fé e graça que seriam permitidas a um Lucrécio, a um Vergílio dolente; a nós. 





Presságios de Shakespeare

Arranjei recentemente uma desculpa relativamente pouco digna para reler o Julius Caesar (o problema da legitimidade do tyrannicídio coincide com a minha these), mas no percurso da leitura estive em atenção para a busca dumas certas duas linhas das quais me lembrava apenas de palavras "dead" "Roman streets", "wander", e pouco mais. Sabia que estavam na peça, mais concretamente sabia que derivavam duma cena em que as personagens narram umas às outras o ambiente carregado de maus presságios que precede o assassinato de César. Acontece porém que a leitura me devolveu apenas o seguinte excerpto da cena 2, que apesar de bastante evocativo da cena de que eu tinha memória, enfàticamente não era o que eu buscava:


A lioness hath whelpèd in the streets,
And graves have yawned and yielded up their dead.
Fierce fiery warriors fought upon the clouds
In ranks and squadrons and right form of war,
Which drizzled blood upon the Capitol.
The noise of battle hurtled in the air.
Horses did neigh, and dying men did groan,
And ghosts did shriek and squeal about the streets.

Julius Caesar II.2 18-25

Agora que voltei a ter internet decidi-me a buscá-lo graças ao omnipotente Google, e rapidamente descobri os versos que tinha em mente. A confusão ficou ràpidamente resolvida, pois tratava-se sim da descrição de maus augúrios, sim da morte de César, mas não no Julius Caesar mas sim no Hamlet, duma cena em que Horatius evoca o ambiente que na outra peça é trazido directamente à cena.


In the most high and palmy state of Rome,
A little ere the mightiest Julius fell,
The graves stood tenantless and the sheeted dead
Did squeak and gibber in the Roman streets
As stars with trains of fire and dews of blood,
Disasters in the sun, and the moist star
Upon whose influence Neptune's empire stands
Was sick almost to doomsday with eclipse.

Hamlet I.113-120.